Conflito de Gerações / Adolescência

Pelo prof. doutor José João Bianchi

Ao consumarem-se, as mudanças dos costumes e das mentalidades colectivas irrompem Dialogo geraçoes 2como descontinuidades abruptas e são, frequentemente, escandalosas. Porém, a sua génese é muito mais lenta e paulatina do que parece, e é a pouco e pouco que se vão estabelecendo os consensos que as tornam possíveis, mediante a difusão de ideias, sentimentos e padrões avaliativos que, começando habitualmente em pequenos grupos, se vão generalizando, para emergirem como o que parecem ser alterações repentinas da percepção maioritária.

Quando, em 1925, Margaret Mead, então com 24 anos, partiu para a Polinésia, com o intuito de conhecer como em Samoa se chegava à maioridade, ou seja, como os jovens samoeses adquiriam o estatuto e viam reconhecida a sua autonomia para o exercício dos papéis próprios da idade adulta, as sociedades desta parte do mundo a que usualmente chamamos Ocidente estavam ainda profundamente vinculadas a um conjunto de representações e valores, de formas tendencialmente estáveis de pensar, descrever e interpretar a realidade e de sentir e exprimir preferências e rejeições, que hoje tomamos como meros preconceitos, quer dizer, formas destituídas de vitalidade, como fósseis, cadáveres enrijecidos de pensamentos, sentimentos e atitudes que terão sido vivos e ajustados, propiciando respostas adaptativas às condições do tempo em que nasceram, mas que, por não terem acompanhado suficientemente a transformação dessas condições, já não são mais do que inflexíveis hábitos mortos que nos levam a lidar mal com o presente e a resistir à inexorável aproximação do futuro, aprisionando-nos na nostalgia do passado perdido.

Em 1925, prevaleciam, nas sociedades ocidentais, o que aos nossos olhos são meros vestígios obsoletos de uma ordem preconceituosa e iníqua, rigidamente estratificadoras das prerrogativas atribuídas aos seus membros, como condição pressupostamente natural, e deles se esperava, em função da raça, do sexo, da posição social herdada, do património possuído, das habilitações académicas, das actividades profissionais prosseguidas e mesmo do que se considerava como próprio ou impróprio de cada idade (recorde-se, por exemplo, que, em vários países, o direito de voto era restringido aos brancos do sexo masculino, chefes de família, acima de um limiar patrimonial ou de rendimento definido, alfabetizados ou com um mínimo de instrução formal). Dessa visão que descrevia e legitimava as diferenças pessoais e cívicas como reflexos de atributos biológicos ou requisitos de uma organização social assente em necessidades permanentes e condições imutáveis, passou-se para uma perspectiva que as explica como, sobretudo, efeitos, relativamente arbitrários e relativamente indesejáveis, de contexturas culturais particulares, relativizando-as e abrindo espaço para projectos políticos orientados para a sua superação. Nesse trânsito do biológico ou natural, para o cultural ou socialmente construído, uma contribuição decisiva resultou da repercussão do saber originário das Ciências Humanas e Sociais, primeiro em meios académicos mais ou menos restritos e, depois, sobre as mentalidades colectivas no seu conjunto.

Coming of age in Samoa, publicada em 1928, é uma das obras seminais que sinalizam o início do longo percurso que, ao longo de décadas e por múltiplas vias convergentes, nos trouxe até às formas de pensar e sentir definidoras da nossa mentalidade contemporânea. Nela, com sustentação factual, sistematicidade argumentativa e eficácia persuasiva, até aí, quase inéditas, a análise de questões como as relativas à estrutura da família, ao género e à atribuição de papéis a homens e mulheres, à adolescência e ao modo de a viver e suas consequências, para os adolescentes e à volta deles, aos mais velhos e à sua posição na comunidade, à sexualidade e às normas de convivência entre indivíduos do mesmo sexo e de sexos diferentes, ou, ainda, em relação às regras e convenções sociais em geral, Margaret Mead defendeu pontos de vista que, na altura, apesar do acolhimento académico que os favoreceu, suscitaram, na opinião pública, grande surpresa e, não raramente, escandalizada repulsa, e que, no entanto, com a passagem do tempo, vieram a incorporar-se no que é, para nós, o pano de fundo incontroverso dos lugares comuns, quer dizer, do que está acima e para além de qualquer dúvida e cujas alternativas se imaginam como absurdas ou se apreciam como inaceitáveis. Para nós, com efeito, as diferenças que transpõem as distinções firmadas no plano biológico (anatómico ou fisiológico) para os planos social, cultural e económico, são, exclusiva ou predominantemente, produtos do arbítrio individual e colectivo que configura e valoriza a realidade em consonância com interesses hegemónicos, e não diferenças enraizadas na natureza.

A rejeição do racismo, das hierarquias sociais que excedam os limites da manifestação contextualizada da complementaridade funcional dos papéis, no âmbito profissional ou em circunstâncias similares, a convicção de que, nas relações entre homens e mulheres, o que advém do género (a representação socialmente construída dos respectivos estatutos e papéis) é, quase sempre, mais determinante do que o sexo (enquanto condição natural biologicamente configurada), e de que, na sua diversidade, as actividades profissionais se revestem de importância e dignidade idênticas, bem como o esbatimento das barreiras que separam o que é tido como próprio (ou impróprio) de cada fase etária, são, para nós, dados adquiridos, verdadeiros ingredientes do senso-comum, quer dizer, do que não precisamos de pensar, para aceitar e tomar como certo, e se constitui como condição de possibilidade do pensamento corrente, como se estivessem inscritas na mesma ordem fundamental que faz com que as maçãs nasçam nas macieiras.

Entrelaçadas como os filamentos de uma corda, num paralelismo sinergético em que todas são, simultaneamente, causas e efeitos umas das outras, as mudanças científicas e tecnológicas, ideológicas e políticas, jurídicas e económicas são extensamente interdependentes. Através de qualquer uma dela, é possível apercebermo-nos de quão amplas e profundas foram as mudanças, impondo um contraste irredutível entre as nossas actuais formas de vida e convivência e os modos de viver nesses anos já longínquos em que Margaret Mead fez o seu trabalho de campo na exótica Samoa e dele extraiu razões para questionar a moldura axiológica da sociedade americana de então. Entre muitas outras, as alterações que ocorreram aceleradamente e se tornaram especialmente notórias depois do fim da Segunda Guerra Mundial, mas cujo começo recua dois, ou mais, séculos –no plano político, com a democratização e o alargamento da responsabilidade social dos estados, com a consolidação das nacionalidades e com a diversificação e institucionalização das relações internacionais, no plano das actividades económicas, com a industrialização e com a terciarização, globalização e financeirização da economia, no plano social, com a tendencial igualdade dos géneros e a impugnação das diferenças fundadas em circunstâncias alegadamente permanentes (como a raça, a nacionalidade ou as características constitucionais congénitas) ou aspectos identitários (como a religião, as convicções filosóficas ou ideológicas, as preferências políticas, a orientação sexual), ou mesmo nas capacidades físicas e mentais, e no plano cultural, em particular com a universalização da escola e o alongamento dos processos educativos e formativos e com a generalização dos meios facilitadores do acesso à informação e da comunicação interpessoal e social, e, ainda, com a multiplicação das formas de fruição e participação em actividades de ocupação dos tempos livres – deram à vida contemporânea, nas sociedades de que somos membros, uma fisionomia peculiar que mal se poderia imaginar há poucas dezenas de anos. Foi neste quadro renovado e, em parte, completamente novo, que a adolescência se foi destacando e especificando, como uma etapa relativamente bem delimitada (ainda que os seus limites possam ser afectados por variações individuais ou de grupo), e os adolescentes passaram a ser percebidos como pertencendo a uma geração – na acepção sócio-antropológica que a palavra geração entretanto adquiriu, de um agrupamento social de base etária – que, sem prejuízo da inegável heterogeneidade associada a outras das suas características pessoais e sociais, os agrega e identifica em torno (e através) das formas de estar e de agir, dos valores, expectativas e aspirações que os singularizam, face aos membros mais novos ou mais velhos da sociedade em que globalmente se inserem.

Sobretudo a partir dos anos 60, o fortalecimento das igualdades cívicas, o acesso da mulher às mais variadas funções profissionais, a regulação da procriação, o adiamento do ingresso na fase profissional da vida, em correlação com o alongamento da escolaridade, e o diferimento do casamento (ou qualquer outra forma de constituição de um núcleo familiar autónomo) e da maternidade, tanto como esse outro sinal indesmentível de progresso que se concretiza no notável incremento da esperança de vida de que temos usufruído, levaram a que seja cada vez maior o lapso temporal entre o final da infância, com a puberdade, e a condição de adulto, convertendo a adolescência numa fase cada vez mais relevante.

Os sonhos da geração que nasceu nos anos subsequentes ao final da Segunda Guerra Mundial estão hoje, surpreendentemente, quase inteiramente realizados. Os valores e as representações que conformam hoje o nosso senso comum são, em grande medida, as motivações que mobilizaram os movimentos estudantis e juvenis da década de 1960. Por outro lado sobrevieram novos problemas e desafios, em parte como consequência dos próprios resultados alcançados.

Entre as inquietações que o futuro nos faz sentir conta-se a eventual agudização do “conflito de gerações”, uma das muitas ideias de cuja divulgação Margaret Mead foi pioneira. Numa sociedade em que a ideia de juventude, mais do que como alusão a uma característica objectiva, vem sendo crescentemente interpretada como um valor, o papel dos adolescentes, pelo misto de autonomia de que auferem e de dependência em que estão limitados, por não disporem de condições económicas para, por eles mesmos, assegurarem a sua subsistência, numa fase de máxima pujança física e máximo fulgor intelectual, impulsionada pela dinâmica emocional que nela, tantas vezes, propende a manifestações exacerbadas, faz deles, dos adolescentes (que agora o são, muitas vezes, durante as três primeiras décadas de vida) uma força motriz do progresso humano em todas as suas vertentes, mas também uma fonte de perturbação das relações interpessoais e grupais, em consequência das activas divergências que os colocam em reiterada oposição aos mais velhos, e mesmo aos mais novos, no seio de um conflito de gerações.

Para anteciparmos o que poderá ver a ser a agudização futura do conflito de gerações Dialogo geraçoes 2atalvez seja útil lembrar o conceito de “contabilidade geracional”, com que Laurence Kotlikoff nos ajudou a compreender que a geração que actualmente ocupa a posição dominante na nossa sociedade contemporânea talvez seja a primeira, em muito tempo, que arrisca transmitir, aos seus sucessores, um legado empobrecido. Ao longo de pelo menos dois séculos o património material e imaterial transmitido de geração em geração, foi sendo cada maior e mais equitativamente repartido. Mas, nas últimas 3 ou 4 décadas, o endividamento das famílias e dos estados fez-nos incorrer no risco de virmos a deixar menos do que o que recebemos. E, se assim é, no plano das condições materiais de existência, na economia e no ambiente, não menos preocupante é a suspeita de que também no plano das condições imateriais, sintetizadas na ideia ampla de cultura, algo de semelhante poderá acontecer, se não em termos quantitativos, pelo menos qualitativamente, como efeito de uma desagregação caleidoscópica das informações e dos conhecimentos avulsos que, desprovidos de quadros interpretativos amplamente partilhados e valores suficientemente consensuais, poderão impedir a renovação da sabedoria que alicerçou o caminho para o bem-estar, a vida pacífica e a coexistência profícua de que temos sido beneficiário.